O PIANISTA
E O HOMEM QUE ODIAVA MOZART
(Capítulo 6 — O reencontro de Seu Abelardo, Dona Helena e a velha Chaleira)
Seu Abelardo foi levado de volta para casa e, após o impacto da notícia, Dona Helena arregaçou as mangas e — não se sabe de onde — encontrou as energias necessárias para que nada faltasse ao seu velho. Todos os olhos estavam voltados para ele, inclusive, claro, os dela, que teve de adiar seu projeto de cuidar da própria saúde.
Mas ele estava menos rabugento, a casa voltou a ficar movimentada pelos filhos, noras, netos e os poucos amigos que tinham, sem que Seu Abelardo ameaçasse ninguém com bengaladas. Havia um clima de paz entre ele e a família. Para um dos netos, era a versão 2.0 do vovô; para outro, o “vovozinho paz e amor”.
Todos tentavam, com muito esforço, seguir a mesma rotina de antes. Sem forças até para assistir às suas “fitas”, criou-se ao redor do Seu Abelardo uma proteção contra tudo que o incomodava. A casa ao lado estava em silêncio — em mais uma deferência, Frederico interrompeu os seus ensaios e estudos. Sabia-se que a sua casa ainda estava ocupada, pelos pequenos barulhos domésticos que vinham de lá e pelas luzes que acendiam e apagavam. De resto, um silêncio respeitoso, que Seu Abelardo, ainda lúcido, considerava a prova incontestável de que, finalmente, ganhara a guerra contra o “Tocador”.
Até que um dia, muito fraco, fez um pedido surpreendente e quase num sussurro — não pelo seu estado e sim pelo acanhamento:
— Helena, eu gostaria de ouvir uma música tocada pelo moço vizinho. Pergunte se ele pode fazer isso para mim. Diga-lhe que não é um concerto. É só uma música. Unzinha só. Eu vou para a varanda e, de lá, eu escuto a música. Só isso.
Claro que Dona Helena ficou surpresa e fez apenas um comentário espontâneo:
— Mozart, Abelardo?
— Por que diabos eu não posso ouvir Mozart, Helena?
— Está bem, eu falo com ele. Que dia você quer ouvir a música?
— Domingo de manhã, se ele não tiver nada melhor para fazer.
***
Frederico, não só aceitou a empreitada como resolveu fazer uma surpresa para o vizinho: iria tocar para ele, no domingo de manhã, na própria sala dele. Para isso, montou-se uma logística delicada, mesmo saindo da casa vizinha, para levar o seu piano até a sala de Seu Abelardo. Foram envolvidos nessa operação, além do próprio Frederico, uma transportadora, os filhos de Seu Abelardo e até vizinhos; bem mais ajuda do que a necessária; todos querendo colaborar de alguma maneira.
Não se procurou explicação, mas a expectativa do domingo diferente, que viria, elevou os níveis de adrenalina de Seu Abelardo, e ele teve uma reação positiva que deixou todos felizes e otimistas.
No sábado, enquanto beliscava uma pizza preparada por Dona Helena, ergueu-se, recostou-se no sofá e assistiu, balbuciando todos os diálogos, ao filme Era Uma Vez no Oeste e emendou com Nos Tempos das Diligências (com os gatos John Wayne e Doris Day, enroscados aos seus pés) com o comentário de sempre, que agora adquiria uma outra conotação:
— Maldição! Vou morrer sem saber se o Ringo morreu, de fato...
Às 20h30, pegou a bengala, atravessou o corredor e sentou-se ao lado de Dona Helena, que via a novela. Assistiu ao lado dela a todo o Jornal Nacional, levantou-se, abriu um sorriso e repetiu o bordão, atualizado:
— Helena, se depender do Cid Moreira, o mundo não acaba nunca...
***
Na manhã seguinte, domingo, 30 de abril, a casa estava cheia de parentes — não faltou ninguém. Estavam lá, também, alguns amigos e vizinhos do casal.
O piano de Frederico foi instalado em um dos extremos da espaçosa sala de visitas. De frente para o piano, no outro extremo, colocaram uma poltrona grande (a mesma dos tempos de namoro do Seu Abelardo e Dona Helena) e o sentaram confortavelmente, com a “mesma” camisa e o lenço de John Wayne, em O Homem Que Matou o Facínora. A súbita melhora que tivera no dia anterior parecia ter-se esvaído e ele estava visivelmente mais abatido.
À esquerda e à direita da poltrona de Seu Abelardo, até próximo do piano de Frederico, colocaram cadeiras, insuficientes para todos e agora ocupadas. Algumas pessoas de pé e, no tapete do centro da sala, os dois gatos, John Wayne e Doris Day, talvez pressentindo algo anormal, grudaram-se um no outro e ficaram quietos.
No ar, a tensão que antecedia os desfechos nos filmes a que ele assistia. Dona Helena, como nos velhos tempos, sentou-se ao lado. O silêncio era absoluto.
Ele pediu os óculos e dirigiu o olhar para os primeiros à sua esquerda. Fitou-os nos olhos, profundamente, e começou:
— Teresa, minha nora; Fernando, meu filho; Francisco e Júnior, meus netos.
E prosseguiu:
— Manuel, meu filho mais velho; Laura, minha nora; Alice, minha neta... — e assim foi, olho no olho de cada um, repetindo o nome e o parentesco, até o último à sua direita:
— Gustavo, meu velho amigo de pescarias e da RFFSA, e Luiza, sua mulher, também minha amiga.
— Abelardo — interrompeu Gustavo — que feliz coincidência, hoje é o Dia do Ferroviário...
Ele, com a voz embargada:
— Quanta saudade, Gustavo, quanta saudade!...
E, em um esforço inesperado, levantou-se, fez pose de cowboy, apontou os dedos indicadores, como se fossem revólveres, girou-os por toda a sala e repetiu, em inglês, a fala de Wil Anderson, vivido por John Wayne, no filme The Cowboys:
— I'm proud of ya... All of ya. Every man wants his children to be better'n he was. You are.
Claro que, pela fragilidade dele, a frase foi repetida com muitas pausas, o que lhe deu um tom ainda mais dramático... se não fosse a forte carga de emoção presente naquela sala, aquela imitação de John Wayne teria sido patética.
Silêncio na sala, quebrado por Frederico:
— Posso traduzir, Seu Abelardo?
— Sim, pianista, por favor...
Frederico traduz a frase:
— Estou orgulhoso de vocês... de todos vocês. Todo homem quer que seus filhos sejam melhores do que ele. Vocês são.
Todos tensos, segurando a emoção, e mais uma vez Frederico, gentilmente:
— Posso começar, Seu Abelardo?
Seu Abelardo, quase sem voz, mas com os últimos resquícios de rabugice:
— Como “posso começar?”... Eu ainda não escolhi a música...
Vasculhou os bolsos, retirou e entregou a Frederico um pedaço de papel com a seguinte anotação: “Serenata nº 10 — Gran Partita – Arranjo para piano”. (No hospital, comentara com o médico sobre o vizinho “Tocador”. De brincadeira, ou talvez não, o médico lhe dissera:
— Seu Abelardo, peça para ele tocar essa música para o senhor. Ninguém pode morrer sem ouvi-la ao menos uma vez...)
O pianista mostrou-se surpreso e, durante alguns segundos, seus olhos se fixaram em uma pequena foto, em uma moldura de madeira sobre o piano, que não tivera oportunidade de mostrar a Seu Abelardo. Bem que tentara. Na foto, seu pai, chefe da estação de Teixeira de Freitas/BA, com os braços sobre os ombros de Seu Abelardo, que, com seu vistoso macacão de maquinista, segurava uma criança em seus braços, que ria e o abraçava com força: ele, o Frederico.
Respirou fundo, olhou nos olhos de Seu Abelardo, voltou-se para as teclas e deu o primeiro acorde da “Gran Partita”, de Mozart.
Todos viram quando o Seu Abelardo puxou Dona Helena para si, mas somente ela ouviu o seu sussurro:
— Chegou a nossa hora, Helena!
Dona Helena aconchegou-se em seu peito. E Frederico prosseguiu com a melhor interpretação que já fizera de uma obra de Mozart.
Nos primeiros cinco minutos, Seu Abelardo manteve a mão suspensa, regendo o pianista com uma batuta invisível. Em seguida, o braço, flácido, escorregou lentamente sobre o corpo de Dona Helena.
Todos sentiram que ele acabara de embarcar — mas contiveram-se e permaneceram em silêncio até o último acorde.
Dona Helena, quieta, sobre o corpo do velho, até que alguém, rompendo o silêncio, se aproximou e disse-lhe baixinho:
— Acabou, Dona Helena...
Mas ela não respondeu. A essa altura, sobre as nuvens, dividindo a cabine da velha “Chaleira” (como fizera em 1943) com Seu Abelardo, que puxava furiosamente o apito e disparava o seu grito de guerra: “Hip hip hurra!”.
Impossível — e desnecessário — ouvir algo além dos gritos de Seu Abelardo e do resfolegar da caldeira da velha “Chaleira”; cujo barulho, outrora ensurdecedor, soava agora como uma sonata de Mozart.
***
Anos depois, Frederico se tornaria um concertista premiado, aclamado em várias partes do mundo. E todos os dias 30 de abril, em qualquer lugar que estivesse, procurava um abrigo de idosos, providenciava um piano, colocava sobre ele a pequena moldura com o retrato e tocava, sempre com a mesma emoção, a Gran Partita de Mozart. Algumas vezes, quieto à frente do piano, como se faltasse algo, e questionado a respeito, respondia com um sorriso enigmático:
— Estou esperando um trem... mas está chegando... já posso ouvir o seu apito...
FIM (O QUE É FIM?) DO CAPÍTULO VI E DO CONTO
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O adeus à velha “Chaleira” Henschel 2-8-2: origem do maquinista Abelardo e a memória ferroviária que acende a série.
Rumo ao fundo do poço: perdas, melancolia e a força de Dona Helena mantendo Abelardo nos trilhos.
A chegada de Mozart: o vizinho pianista e o estopim que mudará o destino da casa.
A “guerra” declarada: garrafas, berros e Mozart — até o silêncio que revela algo mais grave.
Uma guerra sem vencedores: diagnóstico duro, família reunida e o piano ao centro — prenúncio do adeus.
🛡️ Conto O PIANISTA — Registro e proteção da obra
Arquivo: conto-o-pianista-capitulo-6-o-reencontro-de-seu-abelardo-dona-helena-e-a-velha-chaleira-j-verismar_assinado.pdf — Chave/ID: A00PRS
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