03 janeiro, 2025

O PIANISTA — Capítulo 4: Seu Abelardo em guerra contra Mozart e o pianista — conto de j. verismar

Estação e trilhos ao lado de prédio vermelho; capa do capítulo 4 do conto O PIANISTA — “Seu Abelardo em guerra contra Mozart e o pianista”, de j. verismar.
O PIANISTA
E O HOMEM QUE ODIAVA MOZART
(Capítulo 4 — Seu Abelardo em guerra contra Mozart e o pianista)
Naquela mesma tarde, Frederico iniciou os ensaios. Seu Abelardo havia esquecido o aviso que recebera de Dona Helena no dia anterior:
— Vizinhos novos, Abelardo!
Por isso, quando os primeiros acordes do “Dies irae”, do Réquiem, K. 626, de Mozart, irromperam na sala de Seu Abelardo (as casas eram muito próximas, separadas apenas por um pequeno muro), ele levou um susto enorme. A reação foi instintiva: ecoou pela casa — pela rua, pelo bairro inteiro — e já antecipava o tratamento que ele dispensaria a Frederico:
— QUE PORRA É ESSA?
E não adiantou Dona Helena explicar que o moço era “estudioso da obra de Mozart” e parecia gente boa; que mereceria, da parte dele, uma oportunidade.
Seu Abelardo espumava e não dava ouvidos aos argumentos dela. De imediato, sem negociação, diálogo ou direito de defesa, declarou guerra ao novo vizinho — e a Mozart. Não fazia ideia de quem era Mozart e, menos ainda, o vizinho. Para ele, eram só isso: um vizinho e um músico — e bastava. Já era mais que suficiente para deflagrar as primeiras batalhas.
E, para que o “tocador” se preparasse para o que viria, foi até a janela e, a plenos pulmões, lançou o bordão que se repetiria, com pequenas variações, dali em diante.
— PARA COM ESSA MERDA… TOCA MÚSICA DE GENTE!
Frederico estudava, disciplinadamente, quatro horas por dia: às 9h dava o primeiro acorde e, às 13h, o último. Seu Abelardo passou a acordar todas as manhãs com Frederico — e Mozart — como despertadores. Antes mesmo do café, ia até a janela e sapecava o bordão.
Até o fim do ensaio, Seu Abelardo não fazia outra coisa: imaginava — e aplicava — maneiras de atazanar a vida de Frederico. Era uma guerra sem regras e sem tréguas: qualquer coisa virava arma. Chinelos velhos, garrafas PET vazias, o que estivesse à mão. (Dona Helena chegou a arrancar John Wayne, o gato, das mãos dele; do contrário, o bicho teria voado contra a janela de Frederico.)
Treze horas: silêncio na casa do “tocador”. Seu Abelardo relaxava no sofá, sentindo-se vencedor de mais uma batalha e, entre um gole de café e outro, exclamava:
— Tá vendo, Helena? Se eu deixo, esse tocador dos infernos estaria tocando até agora.
Frederico, impassível, mantinha a rotina de ensaios. Nunca respondeu a nenhum ataque e ainda tentou, duas ou três vezes, estabelecer diálogo. Ia até a casa de Seu Abelardo; Dona Helena, porém, nem abria o portão e o atendia pelo interfone, com o recado de sempre:
— Moço, desculpe, mas ele está aqui do meu lado pedindo para lhe dizer: “Abelardo morreu.” E não adiantava insistir:
— Dona Helena, diga a ele que não quero brigar; quero falar sobre uma pessoa em comum que...
Seu Abelardo tomava o telefone e desligava. Frederico acabou desistindo. Dona Helena não sabia o que fazer. Tentava, inutilmente, segurar Seu Abelardo. E, quando cruzava no portão com o pianista, ou o avistava pela janela, apenas balbuciava:
— Desculpe, moço. Ele é doente.
Frederico apenas sinalizava que estava tudo certo.
As batalhas eram diárias — e ficaram repetitivas e monótonas. Do outro lado do muro, durante os ensaios, Frederico fechava os olhos… e incorporava Mozart, como se o mundo — e Seu Abelardo — não existissem, muito menos seus atos de guerrilha.
Esse comportamento do pianista deixava Seu Abelardo ainda mais transtornado. Era como lutar contra um inimigo invisível que ele “abatia” todos os dias, às 13h — criando a ilusão de silenciá-lo para sempre —, mas que renascia mais forte e mais desafiador na manhã seguinte.
E tome bordão e lançamentos de objetos contra a janela (John Wayne, o gato, nessas horas, caía fora) — até que, um dia, Seu Abelardo comentou com Dona Helena que estava conseguindo domar o “tocador”, pois o som do piano estava cada vez mais baixo. Ela se assustou: nos últimos dias, vinha notando que ele assistia aos filmes com o som da TV muito alto — e desconfiou, então, de que o problema estava não no piano de Frederico, mas na audição de Seu Abelardo.
Era preciso levá-lo, com urgência, ao médico. Mas cada ida ao hospital exigia longas negociações, pois ele resistia teimosamente a buscar socorro.
Desta vez, tudo foi surpreendentemente rápido e, quando ele cedeu à pressão de Dona Helena, o piano do vizinho já se calara — e a TV estava muda. Seu Abelardo perdera a audição. Desesperada, ela chamou os filhos, que correram com ele para o hospital.
Ela não pôde acompanhá-lo. Queixou-se de um pequeno mal-estar, desculpou-se com ele e prometeu ir em seguida. Na verdade, ela não andava bem há algum tempo e escondia isso de todos. Ficou em casa e jurou a si mesma que, assim que Seu Abelardo se recuperasse, começaria a cuidar um pouco de si também. Agora, o que importava era salvá-lo.
Foi a última vez que Seu Abelardo saiu da “prisão domiciliar”.
FIM DO CAPÍTULO IV

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🎥 Resumo do PRÓXIMO CAPÍTULO:
Internação às pressas, exames em série e a sentença do médico: a doença de base avançou; resta pouco tempo. A audição até poderia melhorar, mas com riscos altos e custo pesado.
O vizinho pianista estranha o silêncio, vai ao hospital e, anonimamente, viabiliza o procedimento paliativo. A intervenção acontece — e, com ela, a audição de Seu Abelardo volta.
O ânimo renasce, mas a lucidez permanece: ciente do fim, ele exige voltar para casa, ao lado de Helena e dos seus — uma trégua íntima em uma guerra sem vencedores.

📚 Leia também
O adeus à velha “Chaleira” Henschel 2-8-2: origem do maquinista Abelardo, memória ferroviária e o primeiro passo desta história.
Rumo ao fundo do poço: perda de vínculos, melancolia e a força silenciosa de Dona Helena mantendo Abelardo nos trilhos.
A surpreendente chegada de Mozart: o vizinho pianista, o piano de cauda e o estopim que antecede a “guerra” do capítulo 4.
Música como rito de rebeldia afetiva: bar, palco e esquina — um contraponto popular à erudição de Mozart no conto.

🛡️ O PIANISTA — Capítulo 4 — Registro e proteção da obra

Arquivo: conto-o-pianista-capitulo-4-seu-abelardo-em-guerra-contra-mozart-e-o-pianista-jverismar.pdf — Chave/ID: 2BBD77

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