O PIANISTA
E O HOMEM QUE ODIAVA MOZART
(Capítulo 5 — Uma guerra sem vencedores)
Internação às pressas, montanhas de exames, Seu Abelardo sem reagir aos tratamentos e a família apreensiva. Enfim, o diagnóstico terrível, exposto pelo médico responsável com o maior respeito e transparência possíveis:
— Infelizmente, a doença de base do Seu Abelardo — uma gamopatia que vínhamos acompanhando — progrediu a um nível que não conseguimos mais controlar.
E, tentando, mesmo diante da complexidade, ser entendido pelos presentes:
— Essa doença passou a produzir muita proteína no sangue e desencadeou uma emergência chamada síndrome de hiperviscosidade. O sangue ficou, literalmente, mais espesso. Quando isso acontece, os vasos mais finos sofrem. Foi o que ocorreu nos ouvidos, provocando a perda da audição. E, infelizmente, outros órgãos vitais já estão sendo afetados.
Um dos netos, com a pergunta que ninguém encontrava coragem de fazer:
— Quanto tempo, doutor?
— Estamos falando, infelizmente, de semanas, poucas semanas — concluiu.
Mais uma pergunta difícil:
— Doutor, e a audição dele?
O médico, com a mesma cautela:
— Existe um procedimento de emergência para “afinar” o plasma — plasmaférese — que pode aliviar a hiperviscosidade e, em alguns casos, trazer alguma melhora da audição. Mas o benefício é paliativo, e o risco é alto no estágio em que Seu Abelardo se encontra. Além dos riscos, há a questão econômica. Sabemos das dificuldades financeiras que a família vem enfrentando para manter os cuidados do Seu Abelardo, e essa intervenção tem um custo relativamente alto.
E, antes de se retirar:
— Aconselhamos deixar o Seu Abelardo conosco; vamos fazer tudo o que estiver ao nosso alcance para que ele sofra o mínimo possível.
Um silêncio dolorido tomou conta do ambiente — todos entreolhando-se, sem conseguir traduzir em palavras o sofrimento que os dominava.
O desespero não era só pela doença, mas por como contar a verdade a Dona Helena. Ninguém conseguia imaginar se ela entraria em desespero ou se se resignaria para cuidar do velho nos últimos dias de vida. Em uma coisa, porém, todos concordavam: ela não sobreviveria sem o Seu Abelardo.
***
Enquanto isso, o vizinho pianista estranhou o silêncio e foi em busca de informações.
Inteirado do que estava ocorrendo, foi até o hospital e, incógnito, conversou com os médicos e ofereceu uma doação para que o hospital assumisse os custos com o procedimento para aliviar a hiperviscosidade e tentar devolver a audição de Seu Abelardo. Com uma condição: que a sua doação fosse mantida no mais absoluto sigilo.
A família recebe a boa notícia e torce para o sucesso da intervenção:
— Sobre o procedimento de plasmaférese que discutimos... a diretoria do hospital reviu o caso. Decidimos realizá-lo como um gesto paliativo, sem qualquer custo para a família.
E assim foi feito: poucos dias depois, Seu Abelardo voltou a ouvir e ganhou um novo ânimo.
Mas estava consciente de que o fim estava próximo e pediu… Pediu, não. Seu Abelardo nunca foi de pedir. Exigiu ser levado para morrer em casa, junto de Helena, de seus gatos e de “quem mais quiser aparecer”.
FIM DO CAPÍTULO V
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Resumo do PRÓXIMO CAPÍTULO:
Casa cheia, piano ao centro e uma despedida à moda de Abelardo: olho no olho, nomes e laços ditos um a um, a citação de John Wayne e, por fim, o pedido — o Adagio da Serenata nº 10 de Mozart. Uma foto sobre o piano revela o fio antigo que o ligava a Frederico.
O pianista começa a tocar; Dona Helena se aconchega. Abelardo rege com uma batuta invisível até que o braço repousa — e todos compreendem: chegou o seu último trem. Silêncio absoluto até o derradeiro acorde.
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Rumo ao fundo do poço: perda de vínculos, melancolia e a força silenciosa de Dona Helena.
A chegada de Mozart: o vizinho pianista acende o estopim do conflito.
A “guerra” declarada: garrafas, berros e Mozart — antes do desfecho no cap. 5.
🛡️ O PIANISTA — Registro e proteção da obra
Arquivo: conto-o-pianista-capitulo-5-uma-guerra-sem-vencedores-j-verismar.pdf — Chave/ID: MFKZE9
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