03 outubro, 2025

DONA BETI & ANACLETO - Crônica Escolar sobre Amor por j. verismar

DONA BETE & ANACLETO
(A professora e o vendedor de enciclopédias)
Uma crônica escrita por j. verismar
Alguém, nos dias de hoje, consegue imaginar uma sala de aula em que os professores pudessem berrar à vontade, puxar as orelhas dos alunos, dar reguadas, pôr de castigo, até usar palmatórias? Isso tudo com o apoio explícito dos pais — que autorizavam, e até solicitavam, aos professores que, sem dó nem piedade, lançassem mão de todo o “arsenal de tortura pedagógica”.
E o pior: ainda corríamos o risco de chegar em casa e enfrentar uma nova sessão de castigos, desta vez pelos próprios pais — ou, quase sempre, pelo pai. A mãe, mesmo quando merecíamos — e às vezes, muitas vezes, merecíamos —, sempre que possível “passava o pano” (mãe é mãe, em qualquer época da história).
E havia, é claro, professores que abusavam de suas prerrogativas e se excediam: mais sádicos, mais linha-dura, ou, como nos referíamos aos piores dos piores, “o cão chupando manga”. É o caso da nossa “heroína”, dona Bete, que pertencia, por méritos indiscutíveis, a esse grupo.
Soube depois que seu nome, na verdade, deveria ser Bette — uma homenagem do pai à grande e brava atriz Bette Davis. No cartório, por analfabetismo ou antiamericanismo, engoliram um “t” e grafaram “Bete”. Acho até que, se a Davis tivesse sido professora, teria sido igualzinha à nossa Bete.
Era uma pessoa pra lá de comum. Baixinha, quase negra, quase gorda; vestido no meio da canela, fechado até o pescoço; mangas engraçadas, meio bufantes; e um enorme cocó na cabeça (cocó, com acento agudo — não sabe o que é? Já pro dicionário!) — e com uma beleza no padrão Bette Davis, sua inspiradora.
Ela sempre chegava atrasada. E aproveitávamos esse respiro para transformar a sala numa terra de ninguém: os meninos praticando luta livre — todos querendo ser o Ted Boy Marino —, jogando bolinhas de papel nas meninas; elas, por sua vez, espelhinhos nas mãos, arrumando os cabelos, retocando o batom e se revezando na cadeira da dona Bete, imitando seus trejeitos.
Era nesse caos que ela surgia. Não batia nem abria a porta como uma pessoa normal: com os braços cheios de livros e cadernos, dava um tranco com os ombros e invadia a sala como um redemoinho. Na maioria das vezes, se desequilibrava, e seus materiais caíam e se espalhavam pelo chão da sala.
Se alguém se apressasse em ajudar, ela berrava:
— Pode deixar! Não sou aleijada!
Mas, se ninguém se movesse, resmungava:
— Bando de mal-educados! Não servem nem para ajudar a pobre professora!
E aí não tinha “bom dia”. Sacava de uma régua de madeira, quase do seu tamanho, lascava na pobre mesa — que se encolhia todinha — e lançava a primeira ordem:
— Vamos rezar! “Pai nosso, que estais no céu, santificado seja o vosso nome...”
Esse era o início “normal” de uma aula com dona Bete. E nem adiantava esperar apoio da diretora — farinha do mesmo saco — que, quando aparecia por lá, era para dar bronca e bajular a carrasca:
— Agradeçam a Deus ter uma professora como a Bete! Sejam bonzinhos com ela. É uma verdadeira mãe para vocês...
Na hora do recreio, a campainha tocava, mas ninguém se levantava. Ficávamos estáticos, quase sem respirar. Só saíamos quando ela autorizava — um a um, calmamente —; ai de quem apertasse o passo.
E aí acontecia algo interessante: dona Bete e os demais professores se trancavam na sala de reuniões e, pelo menos durante o recreio, nos esqueciam. Era a hora de descarregar as energias (lembra da bagunça na sala de aula antes da chegada dela? Multiplica por dez). Nesse intervalo só apareciam se alguém quebrasse a perna ou algo do tipo — e olha que já tinha acontecido.
A volta para a sala de aula era uma corrida contra o relógio: se ela entrasse primeiro e trancasse a porta, quem chegasse depois ia parar na diretoria. Com direito a sermão da diretora e bilhetinho para o pai.
E cada bilhetinho representava mais uma sessão de tortura em casa. Mas eu me vingava: em minhas orações, ao pé da cama, contava tudinho para Deus — que ouvia tudo calado —, mas eu tinha certeza de que Ele faria alguma coisa. Ia dormir sonhando em chegar à escola de manhã e encontrar dona Bete me recebendo com um abraço. Não há limites, felizmente, para a fantasia de crianças...
Essas eram as regras e todo mundo enxergava nelas o jeito perfeito de moldar os futuros cidadãos. A nossa opinião a respeito pouco importava; se alguém se rebelasse, o couro comia. Nossas opções eram obedecer ou obedecer.
Mas um dia — e é esse dia que justifica esta crônica — dona Bete chegou diferente, pisando leve. Abriu a porta calmamente e, com voz suave, pronunciou uma frase nunca antes ouvida naquela sala, que deixou todo mundo de orelha em pé:
— Bom dia, crianças...
Ninguém entendeu absolutamente nada (a primeira coisa que me veio à cabeça: minhas conversas com Deus). Essa foi a aula mais surpreendente que já tivemos: todo mundo de queixo caído, e dona Bete dando show.
No final, ninguém queria sair da sala. Precisávamos descobrir o que estava acontecendo. Resolvemos segui-la.
Ela se levantou calmamente — “até amanhã, crianças...” —, passou pela sala da diretoria e caminhou até a saída. Do outro lado da rua, chamava a atenção um Maverick vermelho. Ouve-se uma buzina: fon, fon...
Dona Bete, de cabeça erguida, quase desfilando, iniciou a travessia da rua. Para não chamar a atenção, nos agachamos atrás do muro — com buracos providenciais e estratégicos — e aguardamos, nervosos, as próximas cenas.
Os vidros escuros do Maverick vermelho não permitiam ver direito o interior. A porta se abriu e, de dentro, saiu o moço mais elegante que eu já tinha visto: chapéu preto, abas dobradas quase cobrindo os olhos, barba bem feita, um bigodinho enrolado nas pontas, um sorriso maroto (hoje eu trocaria “maroto” por “cafajeste”) dirigido a dona Bete. Tínhamos a sensação de que tudo parou: só existiam dona Bete — aproximando-se dele em câmara lenta — e o moço do Maverick.
Tem mais — ainda não terminei a descrição: terno listrado, camisa amarela e gravata azul. Sapatos tão pretos que o sol refletia neles. Por que será que me lembro de tudo isso? Porque ficamos todos com inveja e eu jurei que, quando crescesse, seria tão elegante quanto aquele moço. Ah! E ia também comprar um Maverick vermelho.
Mas, saindo do meu transe, vou terminar de descrever a última cena. O moço desceu do carro; dona Bete se aproximou; ele tirou o chapéu, curvou-se, abriu a porta educadamente e, antes que ela entrasse, deu-lhe um beijo — na boca!
Eita! Dona Bete estava apaixonada!
— Ah, se já existisse celular com câmera...
Agora era cair em campo para descobrir quem era o nosso Messias, o nosso Salvador. Até que foi fácil: acionamos nossa rede de informantes e... bingo:
Anacleto: o vendedor de enciclopédias, recém-chegado à cidade.
A partir daí, as aulas com dona Bete viraram uma diversão. Adeus, tempos ruins. Quando avançávamos o sinal — e que sinais seriam capazes de conter aquela turma? —, ela dizia, com a sua agora adorável voz:
— Comportem-se, crianças...
Considerávamos coisa do passado aqueles “COMPORTEM-SE, MOLEQUES!”.
E, nesse clima de lua de mel, passaram-se quinze dias — felizes e inesquecíveis. No primeiro dia depois, estavámos em plena farra na sala de aula, quando... de repente...
Dona Bete chegou atrasada (e “chupando manga”), deu um tranco na porta, espalhou livros e cadernos pelo chão, recusou ajuda, lascou a régua na mesa — que gemeu — e determinou:
— Vamos rezar! “Pai nosso, que estais no céu, santificado seja o vosso nome...”
Estávamos todos gelados. Perplexos.
Eu, que sempre fui — segundo avaliação da própria — o mais “atrevidinho” da turma, ousei perguntar. Mas, claro: antes de perguntar, perguntei se podia perguntar.
Ela puxou a régua para junto de si e autorizou:
— Pode... mas veja lá o que vai perguntar. E não seja insolente.
— Dona Bete, pelo amor de Deus... o que aconteceu? — disse eu, com os joelhos curvados, de mãos postas, preparando-me para o que viria.
Ela me olhou no fundo dos olhos, durante uns eternos cinco segundos, e respondeu:
— Tá bom, eu vou lhe contar, seu bisbilhoteiro.
— Anacleto vai ficar trinta dias viajando para vender aquelas malditas enciclopédias.
E desabou em prantos sobre a pobre mesinha — que, da dona Bete, esperava qualquer coisa, menos lágrimas.
E a classe inteira, espontaneamente — mas como se tivesse ensaiado —:
— Volta, Anacleto! Volta, por favor!
FIM

💘 Post Scriptum

O amor, quando bate, transforma leão em gatinho, tempestade em chuvisco, Bette Davis em Grace Kelly. Na verdade, ele não bate — abate.
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🛡️ DONA BETE & ANACLETO — Registro e proteção da obra

Arquivo: dona-bete-e-anacleto.pdf — Chave/ID: O5Q8WT

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