02 janeiro, 2025

O PIANISTA E O HOMEM QUE ODIAVA MOZART — Capítulo 3 — A surpreendente chegada de Mozart na vida do Seu Abelardo

O PIANISTA
E O HOMEM QUE ODIAVA MOZART
(Capítulo 3 — A surpreendente chegada de Mozart na vida do Seu Abelardo)
Os 80 anos que se aproximavam encontraram um Seu Abelardo que já não lembrava o maquinista destemido que, em sua velha “Chaleira”, arrastava pelas montanhas de Minas e da Bahia dezenas de vagões abarrotados de gente e mercadorias e os entregava sãos e salvos, sob aplausos, em Teófilo Otoni, para então se jogar nos braços de Helena.
A realidade, hoje, era que eles — Dona Helena e ele — viviam trancados em casa, em regime de “prisão domiciliar”, como diziam os filhos e netos. Nisso, tinham razão: Seu Abelardo só saía de casa para o hospital e, ultimamente, com muita frequência.
Era de se esperar que alguém, na sua situação — doente, com uma aposentadoria merreca que a cada dia valia menos, gastando uma parte considerável dela com remédios, pouca vida pela frente... —, abraçasse alguma religião, visitasse a cidade onde nasceu, tentasse se reconectar com amigos do passado e partisse, deixando para todos a imagem de um guerreiro manso e resignado, agarrado à vida ou ao que restava dela até o último instante.
Mas, com Seu Abelardo, a história seria diferente. Rasgou o script, resolveu isolar-se e não dividir com ninguém suas frustrações e sofrimentos. Sempre com sua sombra misturando-se à de Dona Helena, nunca daria motivos para que quem quer que fosse se referisse a eles como “Coitadinho do Seu Abelardo...” ou “Coitadinha da Dona Helena...”.
***
Já antes dos 80, logo após a aposentadoria, multiplicou sua rabugice por três — de meio rabugento, virou rabugento e meio. Ou, como vivia provocando um dos netos: “vovô versão 1.5”.
Rabugice gratuita ou apenas encarar a vida olho no olho, como neste desabafo:
— A vida está de sacanagem comigo? Ó, aqui pra ela... — fecha os dedos da mão direita e deixa o médio em riste.
E Dona Helena? Ela até podia não concordar — e, de fato, não concordava — com muitas das atitudes do Seu Abelardo. Mas o amor dela pelo velho era tanto que, como dizia Manuel, um dos filhos:
— Se o papai resolvesse pular do 10º andar, sem rede de proteção, a mamãe pularia junto e só perguntaria depois:
— Abelardo, que diabos você está fazendo?
Por isso, quando ele esticou o dedo médio para a vida, ela endossou:
— Você tem razão, meu velho. Se ela está sendo cruel conosco... que se dane a vida.
***
Mas não pensem que ele era só ranzinzice. Dona Helena que não me deixe mentir: nos tempos de maquinista, vivia rodeado de crianças e de amigos; era um excelente contador de histórias e, segundo algumas más línguas — o que ele nega taxativamente —, até conhecer Helena, um namorador inveterado. Mas a vida, generosa até então, resolveu voltar-se contra ele.
É verdade que ainda tinha Dona Helena — e dava graças a Deus por isso. Mas sua felicidade não foi forjada só com a companhia dela. Sua vida era uma balança em que um dos pratos era ela e o outro, a RFFSA e a velha “Chaleira”. Dona Helena, por mais amor que lhe dedicasse, ocupava só um dos pratos.
Havia uma segunda coisa que Seu Abelardo amava com especial predileção: os filmes de bangue-bangue — ou “fitas”, como ele os chamava. Uma mania trazida desde a infância: o prazer de viajar pelo universo truculento de cowboys e pistoleiros. E não era um cinéfilo muito exigente, não: tanto fazia que fosse um clássico americano, um faroeste italiano ou mesmo um filme “trash”. Desde que o roteiro lhe trouxesse um mocinho, bandidos, confusões e muitos tiroteios, ele se divertia como uma criança.
Esse gosto era visível nas pilhas e pilhas de fitas de videocassete amontoadas por todos os cantos — que os filhos traziam para mantê-lo no seu mundo. Dava para sentir as presenças de John Wayne, Giuliano Gemma, Clint Eastwood... todos circulando por ali, com a maior familiaridade. Seu Abelardo repetia os diálogos e fazia duetos com eles, na língua original. Sua única queixa:
— Música demais. Quase não se escutam as falas...
Todos os fins de tarde, o mesmo ritual: ele, na sala, viajando pelo Velho Oeste; ela, no quarto ao lado, acompanhando as novelas. Lá pelas 20h, ele pausava o faroeste, pegava mais uma xícara de café, atravessava o corredor, sentava-se ao lado dela no sofá e, juntos, assistiam ao Jornal Nacional. Ao final, levantava-se, abria um sorriso e repetia o bordão: “Não foi hoje, Helena, que o Cid Moreira noticiou o fim do mundo...”.
Ela, junto, como esteve aos 50, aos 60, aos 70... e, como costumava dizer:
— Se Deus quiser, até os 100.
Havia, porém, duas coisas que Seu Abelardo não tolerava: vizinhos e música — qualquer vizinho, qualquer música. Essa rejeição foi agravada pela aposentadoria (nunca ninguém ousou perguntar o porquê dessa aversão).
Certa manhã de domingo, enquanto assistia a “Matar ou Morrer”, com Gary Cooper, no instante exato em que o xerife Kane se prepara para enfrentar a gangue, Dona Helena sussurrou em seu ouvido:
— Tem gente chegando para ocupar a casa ao lado. Vizinhos novos, Abelardo!
— Eu quero lá saber que diabos de vizinho, Helena! — rosnou ele, voltando os olhos para o faroeste.
O caminhão de mudanças parou em frente à casa ao lado, chamando a atenção de toda a rua — inclusive de Dona Helena.
Mas foi a última peça a descer do caminhão que despertou a verdadeira curiosidade: um enorme e reluzente piano de cauda, descarregado sob o olhar atento do novo morador, como se fosse uma joia preciosa.
Já no dia seguinte, o vizinho bateu à porta do casal para se apresentar:
— Muito prazer. Meu nome é Frederico, seu novo vizinho. Sou concertista de música clássica e estudioso da obra de Mozart. Espero que a senhora e seu marido gostem de uma boa música...
Dona Helena desconversou e não levou o visitante até Seu Abelardo.
Entrou para casa, coçando a cabeça e pensando: “Sinto cheiro de encrenca no ar. Logo um pianista que toca um tal de Mozart... Isso não vai dar certo.”
FIM DO CAPÍTULO III

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🏠🏠 Resumo do PRÓXIMO CAPÍTULO:
Na primeira tarde de ensaios, os acordes de Frederico atravessam o muro. Seu Abelardo reage em alto e bom som — e declara guerra ao vizinho pianista.
Vêm dias de guerrilha sonora: garrafas, chinelos, berros e um velho som tocando sertanejo no talo. Dona Helena tenta apaziguar; Frederico segue impassível: Mozart, apenas Mozart.
Até que algo muda no ar: o piano parece minguar, a TV perde força. Uma pausa estranha no duelo empurra a história para fora de casa — última saída do velho maquinista.

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🛡️ O PIANISTA — Capítulo 3 — Registro e proteção da obra

Arquivo: o-pianista-capitulo-3.pdf — Chave/ID: AUIVZW

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