O PIANISTA
E O HOMEM QUE ODIAVA MOZART
E O HOMEM QUE ODIAVA MOZART
(Capítulo 2 — Seu Abelardo, rumo ao fundo do poço)
Seu Abelardo perdera não apenas a velha “Chaleira”. Perdera, junto, os amigos com quem convivera por mais de vinte anos, em festivos encontros semanais. Perdera os amigos passageiros e as crianças — filhos destes — que o tinham como um super-herói. E perdera, principalmente, naquele dia de Santa Catarina, em Caravelas, a juventude. Pela primeira vez, aos cinquenta e cinco anos, sentira-se velho.
Dona Helena sempre soube que, para Seu Abelardo, ela e o trabalho na RFFSA — e, por tabela, a velha “Chaleira” — eram as coisas mais importantes da vida. Cabia a ela, agora, desdobrar-se por três, não deixá-lo entrar em desespero e mantê-lo nos trilhos.
Vale aqui uma pausa para contar, ainda que resumidamente, a história dos dois. Seus destinos se cruzaram graças ao trabalho de Abelardo, já maquinista da saudosa Estrada de Ferro Bahia–Minas (EFBM).
O pai de Helena, chefe da estação de Nanuque, transferido para chefiar a estação de Teófilo Otoni, seguiu com a família — e a mudança — na “Chaleira” de Abelardo, como ele a chamava, carinhosamente.
Ela, mais menina que moça, empolgada com a aventura, pôde viajar na cabine, acompanhando o trabalho do jovem maquinista. Abelardo, todo prosa, fez fita para a moçoila, exibindo sua habilidade no manejo da ainda reluzente locomotiva.
Foi amor à primeira viagem.
A partir desse dia, e pelos próximos vinte anos — primeiro como amigos, depois namorados, noivos e, enfim, marido e mulher —, a cena se repetia a cada volta: ao aproximar-se da estação, Seu Abelardo puxava com vontade o apito da velha “Chaleira” e, por entre o fumaceiro, via a figurinha de Dona Helena acenando com as duas mãos e pulando como a eterna moçoila que ele transportara, em 1943, de Nanuque para Teófilo Otoni.
Os últimos vinte e cinco anos de Seu Abelardo, puxando a velha “Chaleira” pelos trilhos de Minas e da Bahia, foram inesquecíveis — anos de muita felicidade em meio ao que eles chamavam de “a grande família ferroviária”.
O contraste, ao acordar no dia seguinte, em Teófilo Otoni, foi desnorteante: sem a velha companheira de trilhos, sem emprego, sem amigos — sentindo-se inútil, mal-humorado e com dores que nunca sentira antes, e que não mais o abandonariam.
Era como se tivesse morrido naquele dia, em Caravelas; encerrado uma vida maravilhosa; e renascido, em Teófilo Otoni, para outra existência — de melancolia e sofrimento.
Daquele dia avassalador até o aniversário de oitenta anos, se não fosse Dona Helena — conforme suas próprias palavras —, “já teria ido parar no ferro-velho”.
FIM DO CAPÍTULO II
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🎹 Resumo do PRÓXIMO CAPÍTULO:
O tempo avança e o velho maquinista se vê às voltas com uma vida cada vez mais silenciosa — até que uma nova melodia atravessa o muro de casa.
É o som de um piano. A chegada de um vizinho músico — e devoto de Mozart — acende em Seu Abelardo uma raiva antiga e um destino inesperado.
Assim começa a guerra entre o silêncio do aposentado e a música do novo morador — duelo que mudará para sempre o rumo dessa história.
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🛡️ O PIANISTA — Capítulo 2 — Registro e proteção da obra
Arquivo: o-pianista-capitulo-2.pdf — Chave/ID: WDKZJJ
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