O PIANISTA
E O HOMEM QUE ODIAVA MOZART
(Capítulo 1 — O adeus à velha “Chaleira” Henschel.)
25 de novembro de 1963, dia de Santa Catarina de Alexandria. Mesmo sem lembrar nem do próprio aniversário, Seu Abelardo jamais esqueceu essa data.
Foi seu último dia de trabalho na RFFSA (Rede Ferroviária Federal S.A.). O fim de uma história, iniciada muito antes, na velha Estrada de Ferro Bahia–Minas (EFBM), quando a RFFSA nem existia.
Quanta ironia. Exatamente quando todos deveria estar em festa comemorando o dia da protetora dos ferroviários. Coitados dos ferroviários e coitada de Santa Catarina...
Nessa data, ele chegou à estação de Caravelas/BA para realizar sua última travessia, pelas tão familiares serras baianas e mineiras, em sua velha “Chaleira” Henschel.
Na memória, imagens dos vai-e-vens de bagagens nas estações. Senhoras elegantes, em vestidos longos de chiffon, estampados com flores, equilibrando-se em escarpins de salto miúdo, puxando os filhos pelas mãos, sob o olhar dos maridos — também elegantérrimos —, com seus chapéus Ramenzoni (novinhos em folha) e ternos de linho impecáveis, bem engomados, preparando-se para embarcar numa grande aventura rumo a Minas.
Os alto-falantes da estação saudavam os que chegavam, desejavam boa viagem aos que partiam e, principalmente, anunciavam recados de mães desesperadas em busca dos filhos que se perdiam na multidão ou dentro dos vagões. Felizmente, os pequenos sempre eram localizados e entregues a elas — que, a cada abraço do reencontro, aplicavam nos pimpolhos um puxão de orelhas e uma palmada na bundinha.
E, entre uma e outra mensagem, o vozeirão de Orlando Silva: “Meu coração, não sei por que, bate feliz quando te vê…”
Nesses dias, a população da cidade parecia marcar encontro na estação.
Os cidadãos de Caravelas — como em todas as paradas de Seu Abelardo — decretavam feriado.
Dia de viagem para quem partia, de despedida para quem ficava e, para o resto da população, simplesmente o dia de ver o trem.
E, claro, aproveitavam a elegância para fazer o registro no lambe-lambe — feliz com a fila que se formava para as fotos.
Mas, naquele 25 de novembro de 1963, esperavam-no apenas a velha “Chaleira”, o chefe da estação e alguns funcionários esvaziando as gavetas.
Sem entender o que se passava — e impaciente com a calmaria —, o vira-lata “Fominha”, símbolo da estação, fazia seus afagos de sempre.
— Quantos passageiros irão embarcar? — perguntou ao chefe da estação.
— Abelardo, quem viaja de trem hoje em dia?… O povo só quer saber de jardineira — esses ônibus moderninhos que estão tirando nossos empregos. Acabou, Abelardo. Vamos pra casa vestir nossos pijamas, sentar no sofá e esperar pelo trem que nos levará na última viagem.
(Seu Abelardo, para si mesmo:) — Quantos vagões vou puxar até Minas, nesta despedida? E o que levo de mercadoria?
Não teve coragem de perguntar.
Deu o último abraço no amigo de longas viagens, embarcou, acionou a velha “Chaleira” e, pela primeira vez, não se ouviu seu grito de guerra: — Hip, hip, hurra!
Antes, um beijo na imagem de Santa Catarina e um pedido de proteção; sem olhar para trás (— Pra quê? Não havia ninguém pra acenar…), arrastou o comboio rumo a Teófilo Otoni, com um pensamento martelando a cabeça: poderia viver mais cinquenta anos, mas seu fim, de fato, começava naquela data inesquecível, em Caravelas.
E assim foi em Alcobaça, Itanhém, Medeiros Neto, Teixeira de Freitas, Nanuque, Ataléia… — em cada uma delas, como diria mais tarde, recebeu os últimos abraços dos velhos amigos, chefes das estações, e colocou mais um prego na tampa do próprio caixão — até, enfim, Teófilo Otoni e os braços de Dona Helena, que sempre esteve — e estaria — à espera.
Desceu, recebeu dela o abraço mais apertado já recebido ao final de uma viagem — ali mesmo, na plataforma —, voltou, afagou a velha companheira de aventuras e se despediu:
— Adeus, minha velha “Chaleira”. Logo, logo, eu e você seremos sucata.
FIM DO CAPÍTULO I
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Resumo do PRÓXIMO CAPÍTULO:
Seu Abelardo perde mais que a velha “Chaleira”: perde amigos, rotinas e a própria juventude.
Dona Helena surge como trilho e bússola — e voltamos ao início dessa história de amor, quando o apito da locomotiva juntou os dois.
No dia seguinte, em Teófilo Otoni, nasce uma vida nova — feita de melancolia —, que só não descarrila por causa dela.
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🛡️ O PIANISTA — Capítulo 1 — Registro e proteção da obra
Arquivo: o-pianista-capitulo-1.pdf — Chave/ID: 3DFDS0
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